A Transcedência de Mr. Darcy
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Matthew Macfadyen como Mr. Darcy em Pride & Prejudice direção de Joe Wright (2005) |
Eu ainda não me decidi por um nome para esta coluna sobre tentativas ensaísticas da minha pessoa. Talvez até a metade do ano eu decida, eu deixe como está uma nomeação - afinal de contas, soa até melhor assim né? Aliás, creio que o texto esteja bem fangirl, mas não me arrependo de nenhuma linha.
Reli como de costume Orgulho e Preconceito (1813), obra prima de Jane Austen no qual eu já postei sobre há alguns anos aqui no blog. Essa última releitura, no entanto, foi bem mais proveitosa do que as outras, pois me permitiu enxergar algumas minúncias do comportamento dos personagens, que antes por falta de vivência, eu deixei passar. Percebi coisas sobre a Lizzy Bennet que também serviriam para o título do post, mas hoje quero falar do amado Mr. Darcy - um personagem muito querido da literatura, mas muitas vezes mal interpretado.
Transcendência do verbo transcender significa, de acordo com o dicionário Aurélio, ser superior a, ir além do ordinário e elevar-se acima do vulgar. É um conceito muito explorado na filosofia, teologia e psicologia quando se trata das capacidades humanas, às vezes tendo a razão e fé como ferramentas para essa superação. No entanto, a transcedência também pode ser definida como a capacidade do ser humano de superar barreiras e tornar-se uma versão melhor de si mesmo.
Bons personagens quando de se trata de qualquer forma de arte, passam por um processo de transcendência, ou seja, eles não são os mesmos ao final da história - tem até um nome, que são chamados de personagens tridimensionais. Esse tipo de personagem possui suas características bem delimitadas no campo físico, psicológico e social.
Porém no decorrer dos dramas da história, essas características podem ser melhoradas, repensadas ou às vezes pioradas. É o mesmo que acontece na vida real: sempre buscamos nos tornarmos versões melhores de nós mesmos todos os dias, e as dificuldades e barreiras da vida nos molda para alcançarmos o nosso máximo.
Mr. Fitzwilliam Darcy, mocinho protagonista da obra de Austen é um dos melhores exemplos que conheço de personagem que passa por um processo de transcedência bem vísivel. À primeira vista parece que ele não muda no fim de história, contudo a verdade é bem contrária: ele se torna, mesmo que de uma forma mais sutil e discreta, uma versão bem melhor dele mesmo do que no começo do livro.
No começo de Orgulho e Preconceito percebe-se uma má dispoção do personagem em relação aos moradores de Hertfordshire, em especial a família de Longborn e Elizabeth. Austen dá ênfase ao fato dele detestar o condado e o baile onde se encontrava, que para ele não era nada mais que tortura. A cereja do bolo fica pelo artificial desprezo por Lizzy quando Bingley indica que ele deveria convidá-la para dançar. Cego como estava, fechado no próprio mundo, Mr. Darcy comete o erro de rejeitá-la e fere o orgulho e a vaidade de Lizzy, motivo que a faz com que ela recuse uma dança na casa dos Lucas e futuramente, seu pedido de casamento.
Logo a fama de Mr. Darcy como um homem orgulhoso e desagradável se espalha por toda a Meryton como fogo em palha, reforçados por Wickham e pela própria Lizzy que não poupa para ninguém o quanto o despreza. Até a metade da história, como sempre vemos quase tudo no ponto de vista dela, fica claro que antipatia dela por Mr. Darcy é mais inspirada por birra e orgulho ferido do que por motivos justos - a falsa narrativa de Wickham só foi uma desculpa por um sentimento negativo em relação a ele já pré estabelecido desde o baile de Meryton.
O que se percebe, porém, é que o grande problema de Mr. Darcy, tirando o desprezo por aqueles inferiores a ele, é nada mais nada menos do que a timidez que o atrapalha e muito na vida social, mas que ele não fez questão de corrigir conforme entrava na vida adulta. Além disso, ele se auto declara egoísta e mesquinho num diálogo com Elizabeth no final do livro, contudo é interessante perceber que esse egoísmo é mais definido como uma opinião muito em alta conta de si mesmo pelo fato dele acreditar fielmente que Lizzy aceitaria sua primeira e desastrosa proposta de casamento.
Particularmente eu me identifico com Mr. Darcy nessa questão de ser mal interpretada. Sempre fui muito tímida e reservada a vida inteira, e às vezes as pessoas que não me conhecia achavam que eu era orgulhosa e metida. Depois que me conheciam, no entanto, viam que não era nada disso e se livravam dos seus preconceitos sobre a minha pessoa. É engraçado perceber durante o livro que em nenhum momento a Lizzy tenta vê-lo sob uma ótica diferente dos primeiros encontros e o julga de forma injusta várias vezes.
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Colin Firth como Mr. Darcy em Pride & Prejudice - BBC (1995) |
Óbvio que Mr. Darcy possui culpa nisso tudo - como os dois até brincam no fim do livro do comportamento censurável de ambos - por não se esforçar mesmo que um pouco para tentar ganhar a boa opinião da amada, pelo menos. Duvido que ele conseguiria sozinho mudar a opinião pública dos moradores de Meryton a respeito dele, porém o segundo erro de Mr. Darcy é não tentar reverter ou enxergar que Lizzy era uma das pessoas que pensava muito mal dele antes de propor.
Um ponto interessante a se destacar é que Mr. Darcy é um dos personagens que menos fala em todo o livro - assim como na série da BBC e no filme do Joe Wright. Todos os outros personagens possui diversos diálogos, alguns bem longos e outros mais curtos. Os diálogos mais longos que eu consigo me recordar dele são no fim do livro, um aqui e ali em Rosings e alguns em Netherfield com Lizzy e a srta. Bingley, no qual ele menciona a famosa frase "my good opinion once lost is lost forever". Percbe-se, no entanto, que não é verdade quando se trata daqueles que ele realmente ama e estima, como a própria Elizabeth.
Assim percebemos aos poucos que Mr. Darcy não é um homem de palavras - seja elas floridas como Mr. Collins, seja ela enganosas como Mr. Wickham - ou de qualquer tipo, mas sim um homem de ações. E por essas ações, temos a reviravolta na história e aos poucos, a própria Lizzy que jurou que ele seria o último homem na Terra que ela se casaria, acaba se apaixonado por ele.
Não preciso mencionar que a descoberta da interferência, apesar das boas intenções e das interpretações equivocadas dele em relação a Jane e Mr. Bingley foi o choque o suficiente para Lizzy dá-lhe um belo sermão de realidade. A partir da primeira e dura recusa, inicia-se o processo de mudança de comportamento e até de vida de Mr. Darcy.
Ao invés de usar de discursos apaixonados na carta, ele parte para a ação imediata de se defender, se desculpar e contar a verdade sobre seus relacionamento com Wickham e o problema de Jane. Ele poderia ter aproveitado e dito de novo para Lizzy que a amava e que reconsiderasse sua recusa, ou até mesmo quando os dois se encontraram no bosque em Hunsford, porém sua maior preocupação que deveria ter sido desde o início, foi de limpar seu nome diante de Elizabeth.
O reecontro em Pemberley é o momento que vemos um Mr. Darcy diferente do ponto de vista da protagonista, tratando bem os tios dela do comércio (posição que era motivos de chacota na época por quem era mais da nobreza), além dos testemunhos de todas as pessoas próximas dele sobre sua personalidade benevolente e bom coração, em especial da própria irmã, Georgiana Darcy.
A benevolência dele é posta à prova com a fuga de Lydia com o odioso George Wickham que faz até mesmo a própria Lizzy duvidar do amor dele por ela após o casamento desenroso da irmã. Mas ela substimou Mr. Darcy, assim como o próprio leitor desavisado, que testemunha uma prova de amor forte demais para ser renegada como qualquer coisa.
A perda da virtude de uma moça no período regencial de Austen (o rei George III da Inglaterra estava incapaz de governar por uma suposta doença, sendo assim seu filho vira Príncipe Regente), era uma das piores desgraças que poderia cair sob uma família. Assim também como comportamentos viciosos, desenrosos e jogatinos de um jovem cavalheiro eram motivos de escândalo e embaraço para os familiares, como vemos em outros dois romance de Austen, Mansfield Park (1814) e Razão e Sensibilidade (1811).
Não era uma lei estatal, mas uma norma social baseada nos costumes do período que eram bem mais rígidos quanto à moral comparados aos dias de hoje. Para nós pode parecer que o caso de Lydia e Wickham é um exagero, mas está muito de acordo com o período o nível de escândalo que a fuga provoca na família Bennet e de todos à sua volta. Nenhum cavalheiro respeitável iria querer se associar a tal família, quanto mais o Mr. Darcy do começo do livro e antes da primeira proposta recusada de casamento.
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Da esquerda para direita: Colin Firth, Jennifer Ehle, Matthew Macfayden e Keira Knightley |
É por isso que ele é um dos personagens mais amados e queridinho da literatura: o fato dele levar em consideração as duras palavras de Lizzy e tentar melhorar seus modos, mas principalmente tomando ações concretas de salvar a reputação da irmã dela e casá-la com o seu pior inimigo apenas para fazê-la feliz, passando por cima do próprio orgulho, é o que torna Mr. Darcy um personagem tão apaixonante. Que mulher não amaria um homem que fizesse tal sacrifício e passasse por tanta mortificação apenas por amá-la? Maior prova de amor do que essa, só se ele morresse por ela!
O processo de transcendência de Mr. Darcy é baseado em ações, em atitudes que influenciam todo o caminhar da história até o final feliz. Ele reconhece os próprios erros e tenta corrigí-los da melhor forma que encontra e até agradece Lizzy por apontar os defeitos dele:
Quando menino, me ensinaram o que era certo, mas não a corrigir o meu temperamento. Deram-me bons princípios, mas deixaram que os seguisse no orgulho e na presunção. Sendo infelizmente o único filho varão (durante muito tempo o único filho), fui mimado pelos pais, que, embora fossem bons (meu pai em especial era a benevolência e a gentileza em pessoa), permitiram, encorajaram e quase me ensinaram a ser egoísta e altivo; a não me preocupar com ninguém além do círculo familiar; a pensar mal da humanidade; a pelo menos querer pensar mal da inteligência e do valor dos outros, quando comparados aos meus. Assim fui eu, dos oito aos vinte oito anos; e assim eu continuaria a ser, se não fosse você, minha mais do que querida, mais do que amada Elizabeth!
AUSTEN, Jane. Orgulho e Preconceito. São Paulo: Martin Claret, 2010. Cap. 58, pag. 287
Se Lizzy queria a prova de amor vinda de Mr. Darcy para com ela - assim como Rosalinda na peça de Shakespeare Como Gostais - ela teve mais do que o suficiente. Ele não deixa de ser quem ele é, e percebe-se que ele ainda no fim do livro tem dificuldades de lidar com a família difícil de Elizabeth. Mas suporta tudo - a própria falta de tato e a família - sem pestanejar, a mesma família que ele criticou, em silêncio. E honra a segunda filha mais velha dos Bennets com um segundo pedido de casamento, sem ligar para as opiniões da tia Lady Catherine ou de qualquer pessoa do seu círculo social que poderia também criticá-lo duramente.
Mr. Darcy é sem dúvida um dos personagens mais fascinantes da literatura e até hoje, um dos meus favoritos e merece sim, ser queridinho e amado das apaixonadas por romances de época como eu ♥
Ps: Recomendo a leitura de dois livros muito bons que recontam Orgulho e Preconceito no ponto de vista de Mr. Darcy. O primeiro é Mr. Darcy's Diary - A Novel da Amanda Grange, um dos mais famosos. O segundo é O Outro Lado de Orgulho e Preconceito da Leareth uma das melhores fanfics de O&P já escritas. Ambas mostram várias facetas de Mr. Darcy baseadas no livro e fiéis ao canon austeniano e ao personagem. Recomendo.
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